Álvaro Cunhal nasceu em Coimbra no dia 10 de Novembro de 1913 e morreu no dia 13 de Junho de 2005, em Lisboa, pouco meses antes de completar os 92 anos. Foi a sua descoberta, a descoberta de uma das maiores figuras políticas e intelectuais do século XX português, que motivou a pesquisa biográfica feita ao longo de mais de três anos e que resultou neste livro.
Seria de esperar que o estudo histórico de uma figura com esta dimensão partisse já de alguma base, mas a verdade é que este livro partiu de um ponto difícil: Álvaro Cunhal sempre recusou o papel de herói individual. Recusou escrever a sua autobiografia. Recusou colaborar com os que tentaram fazê-lo. Recusou o papel de herói individual ao ponto de impedir que o PCP utilizasse a sua fotografia nos cartazes de campanha eleitoral.
Na verdade, mesmo depois do 25 de Abril a sua vida continuou semiclandestina: por exemplo, votava no Liceu Camões porque estava recenseado na casa da irmã, onde Eugénia Cunhal ainda hoje mora, mas vivia noutro local, e mudava frequentemente de residência.
Porque o fazia?
Penso que por razões de segurança, mas acima de tudo de personalidade.
Ora, tudo isto conduziu a um certo mistério biográfico acentuado também pelo próprio aspecto físico: Álvaro Cunhal era um homem fisicamente bonito, mas que projectava uma certa imagem de austeridade e de frieza, resultante, admito, da imagem pré-concebida que existia em Portugal de uma certo “imaginário comunista” onde as figuras soviéticas surgiam como personagens algo teatrais e sem sentimentos.
“Interrogam-me muitas vezes sobre a minha vida. Gostaria de dizer o seguinte: a minha vida é inseparável da vida de todos os comunistas de Portugal”, afirmou Álvaro Cunhal ao jornal Pravda, em 1962, durante o seu exílio na União Soviética
Por tudo isto, procurar Álvaro Cunhal parecia uma tarefa labiríntica, um jogo de sombras chinesas
O que existia sobre Álvaro Cunhal quando iniciei o livro?
Essencialmente textos biográficos de carácter partidário dentro da mesma linha necessariamente panfletária, com uma única excepção: o livro “Hastes sem Bandeiras”, de Yulia Leonidovna Petrova, publicado em Moscovo, 1963, e entretanto votado ao esquecimento
Este livro tem algumas confissões inéditas de Álvaro Cunhal que resultam da sua relação de proximidade com a neta de Krutschev. O tom intimista permite encontrar mais algumas pistas nos relatos indirectos do próprio Cunhal, mas mantém, no essencial, uma “zona de segurança” que evita a sobreexposição.
Porquê esta resistência ao heroísmo individual?
Penso que essencialmente por uma razão não-inscrita no argumentário convencional, uma razão profunda, uma marca particular da sua personalidade: a crença de que só os homens podem falhar. Os ideais não falham. O comunismo não falha. Só os homens falham.
Penso que, também por isso, a recusa em colaborar com registo autobiográfico favoreceu a criação de um modelo de imortalidade de Álvaro Cunhal e do revolucionário comunista. Esse modelo tinha algumas características muito impressivas, das quais destacaria três:
Defesa intransigente da disciplina partidária. O PCP construi-se ao longo de décadas como um grupo de homens e de mulheres excepcionais que abdicaram de tudo por um ideal. Quando digo de tudo, quero mesmo dizer de tudo e, desde logo, estou a pensar nos filhos. A disciplina partidária era essencial porque Cunhal tinha a clara percepção de que apenas a força disciplinadora e organizada podia derrotar o inimigo;
Em segundo lugar, destacaria convicção férrea nas virtudes morais dos comunistas, na “superioridade moral dos comunistas”;
Por fim, em terceiro, a capacidade de sacrifício destes homens e destas mulheres. Quando digo isto, estou a pensar nas torturas, no isolamento, na fome, nos danos psicológicos, nas humilhações.
Neste aspecto particular, deixem-me citar-vos dois relatos:
O primeiro, quando Álvaro Cunhal tinha 24 anos e foi preso no regresso da guerra civil de Espanha. Foi isto que se passou no Aljube:
“Espancaram-me durante horas inteiras até perder os sentidos e ser assim levado para um segredo isolado, estar ali prostrado algumas semanas, ver a cara ao espelho ao fim de quinze dias e não a reconhecer, o corpo todo negro. Mas eu fiquei vivo, outros morreram. Depois de me terem assim espancado longo tempo, deixaram-me cair, imobilizaram-me no solo, descalçaram-me sapatos e meias e deram-me violentas pancadas nas plantas dos pés”
Este é o primeiro relato, o segundo é uma carta de Álvaro Cunhal para a Internacional Comunista da Juventude, depois da tortura, que ele atrás descreveu:
“Após a minha prisão, após estes meses que vivi juntamente com todos estes heróis anónimos, a minha fé na minha geração aumentou. Vi mais de perto a coragem, a dedicação, o heroísmo da juventude revolucionária do meu País”.
Entrou na Penitenciária de Lisboa com 36 anos e saiu de lá com 47. Além das consequências políticas óbvias, este é um momento muito importante na vida de Álvaro Cunhal, desde logo devido às dramáticas consequências do isolamento total, que o próprio descreveu a Petrova:
“Isolado, separado dos seus camaradas, o homem não sabe se conseguirá ainda alguma vez na vida sair à rua, sentar-se num banco, recostar a cabeça, olhar o céu enorme”.
Este isolamento prolongado traduz um certo sentimento de que a prisão podia ser perpétua, e ele tinha 47 anos, na verdade, teria sido mesmo perpétua se não tivesse fugido, e protagonizado uma fuga que representa provavelmente o maior feito heróico contra a Ditadura antes do 25 de Abril.
O isolamento nas prisões da ditadura, que Álvaro Cunhal descreve, envolvia o risco real de loucura, assumido pelo próprio num requerimento dirigido ao director da prisão pedindo material para trabalhar para preservar a “boa saúde do espírito”.
Como disse, a terceira e última das prisões foi um momento muito marcante do ponto de vista pessoal devido à ruptura com a mãe: é nesta altura que Mercedes lhe escreve uma carta dolorosa explicando que deixara de ter forças para continuar a vê-lo sofrer na prisão.
Nada disto derrubou Álvaro Cunhal porque Álvaro Cunhal era um revolucionário em estado puro.
“Nenhum verdadeiro comunista deixou de o ser por causa das torturas”
Encontrei a melhor demonstração do forte impacto provocado pela personalidade de Álvaro Cunhal como revolucionário e pelo seu magnetismo como homem num texto de Jorge Amado, que resulta de um encontro entre ambos em 1948.
Cunhal regressava a Portugal por Paris após uma viagem secreta à Jugoslávia (onde conseguiu a sua primeira grande vitória política com a reintegração do PCP no Movimento Comunista Internacioal). Encontrou então em Paris o escritor brasileiro, que ali estava exilado.
Nesse encontro, escreve Jorge Amado, aparece um homem “tão magro, de magreza impressionante, chupado, a face fina e severa, as mãos nervosas, dessas mãos que falam, mal penteado o cabelo, um homem jovem mas fisicamente sofrido, homem de noites mal dormidas, de pouso incerto, de responsabilidades imensas e de trabalho infatigável” – trata-se de Duarte, O Revolucionário Português
O revolucionário. É esta a palavra que melhor sintetiza Álvaro Cunhal: revolucionário.
O que nos leva para uma certa imagem de herói romântico que o próprio rejeitava, dizendo mesmo que não queria sentir-se reflectido em qualquer mito. Mas o mito acabou por se criar e estando criado tornou-se no objectivo deste livro: descobrir o homem por detrás do mito, descobrir o homem que quando surgia em público parecia surgir do chão, descobrir o homem que era filho, companheiro, pai e avô. Descobrir Álvaro Cunhal por detrás do mito, mas com o fazê-lo com escassas fontes escritas e testemunhos condicionados pela vontade do próprio em preservar o silêncio?
Onde procurar Álvaro Cunhal? Tentei fazê-lo de várias maneiras. Utilizando os arquivos em Lisboa, em Madrid e na Rússia, mas tentando ir mais longe. Reconstruindo a sua vida em Coimbra, em Seia, em Loures, em Sintra, em Lisboa, em Moscovo, em Madrid e em Paris: resgatando a memória de familiares, amigos, companheiros do partido, vizinhos, visitando os locais onde esteve, onde viveu e onde se escondeu. Entrevistando os seus familiares directos, a irmã Eugénia Cunhal, a filha Ana Cunhal, a ex-companheira Isaura Moreira, a companheira da última prisão Sofia Ferreira, os grandes amigos como Joaquim Gomes, Carlos Costa, Jaime Serra, Margarida Tengarrinha, Aurélio Santos, e personalidades polémicas mas marcantes como Cândida Ventura e Santiago Carrillo.
Creio este livro reúne um conjunto até agora único e inédito de testemunhos de pessoas do círculo íntimo de Álvaro Cunhal.
Também procurei Álvaro Cunhal na sua própria literatura: nas obras de Manuel Tiago está presente como personagem político e histórico, individualmente ou diluído no herói colectivo, como “Até Amanhã, Camaradas”, “Cinco dias, Cinco noites”, “A Estrela de Seis Pontas”, “A Casa de Eulália”, “Fronteiras”, etc
E também nas obras onde Álvaro Cunhal está presente, mas oculto nas sombras, como homem, como pai, caso do livro “Um risco na areia”. Foi aqui que descobri relatos dissimulados da relação com a filha.
Num certo sentido, Manuel Tiago é uma prova da autenticidade dos sentimentos de Álvaro Cunhal
Quem era então Álvaro Cunhal que fui descobrindo em tantas partes?
A sua família mudou-se de Coimbra para Seia. Álvaro Cunhal tinha 3 anos nesta “infância alegre e feliz”. Mudaram-se depois para Lisboa após a morte de Maria Mansueta. Álvaro Cunhal tinha 11 anos quando a irmã morreu. A adolescência foi perfeitamente normal. Futebol, cinemas, danças e namoricos. Não se esqueceu de viver. Começou a contactar o PCP na universidade quando tinha 18 anos. Foi a primeira vez a Moscovo com 22 anos (com Bento Gonçalves) e regressou por Espanha, onde se envolveu na Guerra Civil. Um momento marcante da sua estruturação como revolucionário.
Esta primeira fase de contacto com o PCP ocorreu na semiclandestinidade. O salto definitivo ocorreu quando tinha 22 anos. As férias de Verão 1934 praia S. Pedro Muel foram as últimas em família. Mergulhou na clandestinidade em 1935. Os pais explicaram a Eugénia a decisão do irmão e pediram segredo, pediram que a perda fosse sofrida em silêncio. Cunhal tentou manter contactos com a família em locais secretos, como o Portinho da Arrábida.
Esta decisão de abandonar a família, a mesma decisão tomada por tantos outros heróis anónimos, teve um impacto forte na família de Álvaro Cunhal. Num certo sentido, representava a perda do terceiro filho:
A irmã Maria Mansueta morreu com tuberculose aos 7 anos;
O irmão António (3 anos mais velho do que Cunhal) morreu de tuberculose com 24 anos. Teve uma vida de boémia, ligada ao cinema experimental (co-autor da Lenda de Miragaia). Era um artista modernista, irreverente.
A irmã Maria Eugénia, nasceu 6 anos após morte da irmã. Poetisa, tornou-se no porto de abrigo para o irmão ao longo de toda a sua vida. Nunca perderam o contacto.
Visitou o irmão na prisão a primeira vez quando tinha 10 anos. Cunhal tinha deixado um sinal: se a gabardina não estivesse no cabide significa que teria dormido fora e, provavelmente, sido preso. Quando isso aconteceu, Eugénia escondeu papéis do irmão atrás de um quadro (incluindo tese sobre aborto)
Quando regressava das visitas à prisão, ao Aljube, a mãe levava para casa as roupas cheias de sangue para lavar em casa e dizia a Eugénia que os uns bichos tinham mordido ao irmão. Quando gravámos um dos testemunhos para o livro, Eugénia recordou as palavras da mãe e disse que ainda se lembrava do cheiro do corpo do irmão quando o abraçou na prisão.
Também Eugénia foi presa aos 18 anos pela PIDE (a mãe sentou-se na porta da sede da PIDE a exigir que fosse libertada) e foi para a irmã que Cunhal escreveu uma carta onde justificava o mergulho na clandestinidade e pedia: “Dá aos pais aquilo que eu não puder dar”.
A palavra que Eugénia Cunhal mais usa para falar do irmão é “ternura”.
O pai, Avelino Cunhal, fundou a Sociedade de Propaganda e Defesa do Concelho de Seia, terra onde se realizou o último comício republicanos no regime monárquico com Afonso Costa, foi advogado e Governador Civil da Guarda. Publicou vários livros e contos, peças de teatro, escreveu artigos nas revistas de maior influência cultural da época e pintou (PIDE apreendeu um dos seus quadros, “O Menino da Bandeira Branca)
Avelino Cunhal era um humanista que Mário Soares classificou como “príncipe da Renascença”.
Depois da abandonar a sua terra com a família, continuou como advogado em Lisboa e professor de História. A PIDE vigiava-o à procura de uma pista que levasse ao filho e acabou mesmo por prendê-lo, depois de invadir a sua casa e de sequestrar a mãe, a mulher e filha. Durante três dias e três noites os agentes da PIDE viveram em sua casa. Avelino Cunhal começou por estar incomunicável em Caxias, forçado a comer perto balde dejectos . Uma humilhação que pretendia atingi-lo não apenas a si mas acima de tudo ao filho
Dizia Álvaro Cunhal: “O meu pai foi um homem excepcional de carácter e de integridade e muito recebi dele no que respeita aos ensinamentos sobre o comportamento cívico e a maneira de respeitar os outros e de te intervir socialmente sem ser com o meu interesse a determinar os meus actos”.
Avelino Cunhal morreu em 1966. A profunda tristeza de Cunhal por estar exilado nessa altura está evidente numa carta que escreveu para a irmã a dar conta do seu profundo desgosto, da “dor irreparável” pela distância e pela impossibilidade de um “último adeus" ao pai.
Avelino Cunhal foi um modelo cívico para o filho, que o ajudou na descoberta das artes, pintura, literatura e desenho. Cunhal tambémherdou do pai a subversão intelectual
A Mãe representa a força disciplinadora. Impôs-se pela moral religiosa e pelo culto da disciplina. “Mulher voluntariosa, profundamente crente, católica, mas que, como mulher possuidora de uma personalidade muito forte, me auxiliou muito em momentos da minha vida”, disse Cunhal da mãe.
Discordava profundamente das opções políticas do filho. Já tinha perdido dois filhos: as opções políticas de Cunhal significam perdê-lo também e essa dor está expressa numa derradeira carta que escreve para o filho: “Álvaro, eu já não tenho forças para te ir ver à prisão”
Esta dimensão da vida privada de Álvaro Cunhal tem um ponto necessariamente destacável: Álvaro Cunhal como pai. Álvaro Cunhal apaixonou-se várias vezes, mas a mais expressiva de todas aconteceu logo após a fuga de Peniche e que resultou no nascimento da sua única filha, Ana Cunhal.
Álvaro Cunhal conheceu Isaura Moreira durante a própria operação. Tinha acabado de cumprir 11 anos de prisão. Conheceram-se em Janeiro de 1960. Foram pais em Dezembro desse mesmo ano. Fugiram para a União Soviética em finais de 1961. A dramática despedida decorreu na praia das Maçãs, com a PIDE no seu alcance já depois de terem assaltado a casa de onde tinham acabado de fugir. O exílio em Moscovo representa a primeira oportunidade que Álvaro Cunhal tem para ter uma vida em família. Tinha 48 anos.
Foi essa procura do homem comum que me levou a Moscovo. Ao bairro onde viveram e onde foi possível reconstituir as rotinas de uma família normal.
Cunhal e Isaura separaram-se em 1964, mas manteve sempre o contacto com a filha. Mandava caricaturas de animais para despertar sentido de humor e passavam férias Bucareste juntos, mas o reencontro pleno após 25 de Abril foi doloroso. A acção do romance "Um Risco na Areia" tem como contexto histórico-político o 28 de Setembro até à queda de Spínola, mas expressa em simultâneo uma narrativa pessoal.
É o relato da angústia permanente de um pai que tentar recuperar a relação perdida com a filha antes do 25 de Abril.
Ana Cunhal não se adaptou à escola em Portugal e, num certo sentido, reivindicou o direito a ser adolescente sem o peso de ser filha de Álvaro Cunhal: “Queria ser livre de cometer erros na minha vida como qualquer outra pessoa, sem ter de passar por um julgamento público”.
A reconciliação, sem ter havido uma ruptura drástica, foi lenta, mas terminou com uma relação muito forte de Álvaro Cunhal com os netos e com a filha, penso que bem ilustrada nos pôr-do-sol que ambos partilhavam na Praia das Maçãs, já bem depois do 25 de Abril. A mesma praia de onde Álvaro Cunhal e a companheira grávida tinham fugido para um longo exílio.
O que fica então do homem e da sua obra?
Mas como todos os grandes líderes políticos Álvaro Cunhal não deixou de se preocupar com o seu legado na História, ainda que dentro dos limites que definiu e que praticou. Disso é exemplo a revelação pontual de alguns aspectos da sua vida privada, sendo o mais importante, já na fase final da sua vida, da revelação do seu pseudónimo literário. Estou convicto de que os livros de Manuel Tiago são o espelho da alma de Álvaro Cunhal.
Fica o legado de um homem que procura a felicidade na coerência, um homem que quis dialogar com a História e que, apesar de todas as reservas quanto à exposição da sua vida privada, tinha de si próprio a imagem de um líder visionário e profético
Não existiu Álvaro Cunhal, o político, Álvaro Cunhal, o artista, Álvaro Cunhal, o homem. Existiu Álvaro Cunhal. Este Álvaro Cunhal multifacetado e que se desdobrou em várias existências, mas sempre coerente e fiel os seus valores.
“Não sinto nada. Sou um profissional”, afirmou com aparente frieza no encerramento do XIV congresso Dezembro 1992, o congresso da sua despedida formal, recheado de emoções, mas onde Cunhal actuou em coerência no seu quadro mental de revolucionário.
Repito: o que existiu foi um homem que procurava a felicidade na coerência, um homem que admitiu a dúvida e que reconheceu em autocrítica o fracasso da URSS, mas que manteve intacta a sua convicção num certo devir histórico e nas virtudes da construção de um modelo comunista isento de desvios. Aliás, um legado que ainda hoje serve de base ao PCP