Estive apenas uma vez com Álvaro Cunhal. Com toda a certeza, o homem que eu conheci num seminário sobre arte, não guardou nenhuma memória minha mas eu guardo até hoje uma fotografia que tirei com ele e que, ainda agora, ocupa um lugar importante na minha casa. Contudo, as duas horas que estivemos juntos influenciaram para sempre a convivência religiosa da minha família. A minha família materna sempre foi de esquerda. A paterna, sempre foi de direita. Em comum, têm o facto de ambas serem bastante católicas e de respeitarem as ‘regras’ e as ‘normas’ da Igreja Católica. Vivo em Braga, sigo as tradições e cumpro os rituais. No Domingo de Páscoa, junto a família e os amigos, faço um tapete de flores na rua e abro as portas da minha casa para que entre o Compasso. Em família, cumprimentamos o sacerdote e a equipa do Compasso, beijamos a Cruz e as crianças podem mesmo badalar a campainha, em forma de sino, que acompanha ‘Jesus ressuscitado’. Tudo bem? Não, tudo mal. Pelo menos desde que decidi colocar na sala a fotografia de Álvaro Cunhal. A primeira a queixar-se foi uma tia: “Que sacrilégio, rapariga, então tens aqui o Cunhal na sala onde vais receber o Compasso”? Sem esperar resposta, pegou na moldura e escondeu-a na cozinha. No ano seguinte, foi a vez da minha mãe avisar que era melhor tirar a fotografia do lugar e voltar a pô-la no sítio depois “do senhor padre sair”. Foi o limite: A fotografia ficou onde estava e o Compasso entrou e saiu da minha casa sem que nada de grave tivesse acontecido. Mas, mesmo assim, com o passar dos anos, a discussão continua. A mesma tia que, quando Álvaro Cunhal morreu, mandou celebrar uma missa, encomendando a Deus a sua alma, e que ensinou uma geração de sobrinhos a cantar, afinadinhos, “De pé, ó vítimas da fome…”, não quer que Cunhal esteja na sala quando, no Domingo de Páscoa, o Compasso entra cá em casa. Emília Monteiro, jornalista
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