quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

O irmão de Álvaro Cunhal

A família Cunhal mudou-se para Lisboa em 1924. As mortes de António José com 24 anos e de Maria Mansueta com apenas 7 anos deixaram marcas profundas. Álvaro Cunhal tinha 5 anos quando a irmã morreu. “Durante alguns anos praticamente inutilizou a vida da minha mãe pela dor de tal perda. Também, neste mesmo período, a vida foi muito complicada, muito difícil”. António José, três anos mais velho que Cunhal, morreu com tuberculose e gangrena pulmonar em 1933.




Lisboa


Teve uma vida intensa ligada ao cinema experimental. Realizou um filme de elevada dificuldade técnica. A Lenda de Miragaia representa o auge da sua curta vida artística. Trata-se de uma animação que recorre às silhuetas animadas, sendo o único filme português conhecido a utilizar a técnica neste período. António Cunhal e Raul Faria utilizaram os métodos pioneiros da primeira longa-metragem de animação do cinema europeu, As Aventuras do Príncipe Achmed, de Lotte Reinigir. Numa entrevista concedida em Março de 1930 à publicação Cinéfilo, confessaram o entusiasmo pela nova técnica. “Nada há escrito sobre o assunto. Nada há que nos sirva de guia”. Conheciam a obra de Lotte Reinigir e sabiam que o seu trabalho tinha contado com a ajuda de inúmeros desenhadores e de auxiliares para recortar as figuras. “Nós acumulamos todas essas funções. Somos os dirigentes e os operários, simultaneamente”. António Cunhal assumia-se como um artista modernista e encontrou na absoluta originalidade da técnica das silhuetas uma motivação acrescida. A Lenda de Miragaia tornou-se numa obra de referência.





Sequência d' A  Lenda de Miragaia

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

A iniciação

Álvaro Cunhal terminou o curso liceal com média de 13 valores e em 1931 entrou para a Universidade de Lisboa. Tinha acabado de completar 18 anos e cruza-se finalmente com o comunismo. A adesão ao PCP foi como uma ordenação. “A minha opção já estava feita e quando entrei na Faculdade [de Direito] procurei os comunistas para me filiar no Partido”. O contacto surgira gradualmente através dos livros e dos jornais. “As leituras começaram a trazer-me notícia da Revolução Russa, da luta dos comunistas e do marxismo, comecei a ter uns livros à mão a esse respeito, um pai muito respeitador, homem de espírito aberto e democrático, e portanto foi fácil”.


É esta capacidade da subversão intelectual e de sobressalto cívico de Avelino Cunhal que abre as portas do comunismo ao filho. Salazar já iniciara a sua carreira despótica no Ministério das Finanças e Estaline executava a sangrenta colectivização dos campos russos provocando uma vaga de deportados entre uma classe marcada de agricultores: os “kulaks”. Sucederam-se as revoltas nos campos russos, as deslocalizações de famílias inteiras para regiões inóspitas com o falso pretexto da urgência de serem “colonizadas” e o bloqueio das cidades para impedir as populações de regredirem nos seus caminhos. Uma política executada à custa de sucessivos esmagamentos sangrentos diante das tentativas de insubmissão.




Além das vítimas directas, o terror da “deskulaquização” estalinista contribuiu directamente para a Grande Fome de 1932 -1933. Um fenómeno dramático que gerou episódios de canibalismo entre os Russos. Este mundo distante demorou a chegar ao PCP. Desde logo porque os dirigentes internacionais que visitavam a União Soviética eram condicionados por um manipulador programa de visitas assépticas. Os Soviéticos mostravam somente o que queriam que fosse visto.


A primeira visita de Cunhal em 1935, com Bento Gonçalves, passou necessariamente longe da realidade do estalinismo. “Ele chegou encantado de Moscovo. Não tinha razão para desconfiar da nada do que se passava”, justifica Cândida Ventura. “Nessa primeira vez, entre os altos dirigentes, só conheceu Suslov e só conseguiu ver a União Soviética que mostravam para propaganda, as visitas guiadas ao mausoléu onde estava o corpo de Lenine e alguns eventos sociais”, recorda, depois de ter estado com Cunhal logo após o seu regresso de Moscovo.








terça-feira, 28 de dezembro de 2010

A Fuga

A moral do revolucionário na prisão


A prisão de um comunista representava uma oportunidade para mostrar a sua têmpera revolucionária. As três detenções de Álvaro Cunhal durante a sua longa vida de clandestinidade permitiram-lhe identificar um conjunto de regras consideradas essenciais para que os revolucionários pudessem ultrapassar os interrogatórios, as torturas e as detenções arbitrárias e intemporais.  Se Fores Preso, Camarada” começa desde logo com uma dura advertência. “Se fores preso, camarada, cairá sobre ti uma grande responsabilidade. Terás de continuar defendendo o teu partido, os teus camaradas, o teu ideal, mas em condições muito diferentes, pois que te encontrarás isolado nas mãos do inimigo, sujeito aos seus insultos e às suas violências. Se fores preso, camarada, encontrar-te-ás em circunstâncias tão duras como nunca talvez tenhas atravessado”. Cunhal exige aos militantes que resistam e dêem provas perante o partido e perante os outros de que são “verdadeiros comunistas”. Comunistas capazes de se manterem “firmes” e “fiéis” aos ideais que defendem mesmo nas mais difíceis condições. Apela à resistência e reafirma a superioridade da lua comunista.




A leitura do folheto tornava a prisão uma coisa real e iminente. Passava a constituir mais um elemento do quotidiano. O que implicava viver uma angústia silenciosa esperando ouvir a porta ser derrubada a meio da madrugada pela polícia, dando início a um processo de sujeição física e psicológica. Joaquim Gomes, preso por três vezes, confessa o receio permanente em que os quadros viviam. “De facto, tinha medo. Muitas vezes me interrogava se teria forças para resistir aos brutais espancamentos e torturas da PIDE”.

Carlos Gomes e Joaquim Gomes estiveram presos no Forte de Peniche e foram ambos previamente torturados

As torturas na prisão do Aljube resultavam frequentemente em episódios de alucinações provocadas pela privação do sono e os agentes aproveitavam a fragilidade dos presos fingindo escrever num papel que depois guardavam no bolso para chamar a atenção do detido.

A prisão do Aljube, em Lisboa

Uma alegada confissão muito importante que acabara de ser feita sem que a vítima disso tivesse noção de que o fizera. A aparente menoridade das perguntas e das situações levava o prisioneiro para uma armadilha psicológica: trair o partido dando uma resposta que parecia inócua ou confirmando um qualquer dado já do conhecimento da polícia. A cena do “PIDE bom” e do “PIDE mau” degenerava invariavelmente em ataques de fúria de todos os agentes no caso de irredutibilidade dos presos.


O partido espera que os seus revolucionários aguentem estoicamente todas as privações e sevícias, conscientes de que estão a fazê-lo em nome de um bem maior. O sacrifício com a própria vida representa o limite do ideal revolucionário e Álvaro Cunhal irá dizê-lo depois do 25 de Abril numa homenagem a Catarina Eufémia. “Morreu como deve morrer um membro do Partido. Morreu à frente das massas, encabeçando a luta de classe, defendendo os interesses vitais dos trabalhadores”.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Cunhal reencontra a filha



Álvaro Cunhal caminhava para os 90 anos quando escreveu o seu sexto livro de ficção literária como Manuel Tiago. Um Risco na Areia tem como face visível o desenvolvimento da actividade política de um centro de trabalho do PCP desde os dias que antecederam o 28 de Setembro até à queda de Spínola, mas oculta uma outra dimensão.



O romance tem subtilmente impressos caracteres da vida familiar de Cunhal num período delicado de transição entre o mundo da clandestinidade no estrangeiro e a vida quotidiana num Portugal efervescente. É um livro de reencontros publicado na fase final da vida. A realidade paralela do romance reflecte a angústia permanente de um pai que teve de se separar da filha antes do 25 de Abril devido ao envolvimento na luta do PCP.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

O derrubamento do fascismo


Álvaro Cunhal ascendeu a secretário-geral do PCP e musculou o discurso sobre a tomada do poder depois de fugir do Forte de Peniche. Recuperou a inevitabilidade do levantamento de massas já expresso nos congressos anteriores, mas adicionou os caracteres da inevitável violência. “Devem ganhar-se as massas populares para a ideia de que é a elas que cabe derrubar o fascismo e conquistar a liberdade política, que se devem preparar para duras batalhas e que a acção armada pode vir a impor-se”. O comité central de Março de 1961 devolveu -lhe o poder com base nas orientações de O Desvio de Direita nos Anos 1956 -1959.


As teses complementam o documento contra a tendência anarco-liberal na organização do trabalho de direcção publicado em Dezembro de 1960 e que se tinha constituído como instrumento de denúncia das “traições” e dos “erros” operacionais. Os dirigentes consideraram que a definição da via pacífica para o derrubamento da ditadura representava um “desvio oportunista de direita” que tinha “enfermado» a orientação do PCP desde 1956. A “via pacífica” (1956/59) já se tinha manifestado logo após o final da Segunda Guerra Mundial com uma versão denominada “política de transição” (1945/48). Ambas as concepções tinham em comum a ideia benigna da desagregação da ditadura e limitavam as massas ao papel de acelerador desse processo. Ambas tinham um defensor: Júlio Fogaça. “Esse camarada teve uma influência preponderante na adopção pelo partido dos conceitos fundamentais da “política de transição”, escondido sob a capa da “solução pacífica”, acusa directamente Cunhal dirigindo -se a “Ramiro”.


Filhos da clandestinidade

Ana Cunhal


O aparelho do PCP organizou a fuga de Isaura Moreira e de Ana Cunhal para o exílio. “O partido é que decidiu que eu tinha de sair com a minha filha”, recorda a antiga companheira de Álvaro Cunhal. Não estavam ainda devidamente identificadas pela PIDE e puderam fazer a viagem de carro com um passaporte cedido por uma militante. Isaura adoptou, por força das circunstâncias, o pseudónimo “Teresa” por ser o nome registado no documento e Ana, com pouco mais de seis meses, ficou com o pseudónimo de “Paula”. “A camarada que cedeu o passaporte tinha um filho chamado Paulo e mudou-se apenas uma letra no nome que estava averbado”, refere Isaura Moreira. As fotografias foram igualmente falsificadas. Mãe e filha saíram de Portugal no final de Agosto de 1961. Atravessaram Espanha e França de carro com um casal de funcionários do PCP que aceitara cumprir a delicada missão de retirar de Portugal a jovem companheira de Cunhal e a sua filha recém-nascida. A PIDE não tinha fotografias identificativas de Isaura Moreira, mas sabia da sua existência desde as operações falhadas na casa do Penedo, em Sintra, e na Achada, em Mafra. Chegaram a Paris em segurança. A companheira e a filha de Álvaro Cunhal foram alojadas na casa de um cidadão francês que vivia com uma filha já adulta. A mulher tinha sido executada num campo de concentração nazi durante a Segunda Guerra Mundial. Isaura e a filha ficaram algumas semanas em Paris antes de viajarem para a União Soviética ao encontro de Cunhal. Partiram em finais de Setembro para Praga e da capital da Checoslováquia transitaram para a União Soviética, onde chegaram em Outubro. Após a queda da casa de Mafra, Cunhal procurara Isaura por curtos períodos de tempo nos refúgios no Porto e na Amadora. Tentou aproveitar todos os momentos para estar com a companheira e com a filha bebé. “Num dessas alturas, estivemos os três juntos quinze dias, no Porto. Depois tornou a 'desaparecer'”. A vida conjugal só teve alguma normalidade a partir de Outubro de 1961 quando Cunhal, Isaura e Ana começaram a viver juntos em Moscovo, num apartamento da Voroby’evskoye Shossé. Aos 48 anos, o líder do PCP tem o seu primeiro núcleo familiar desde que abandonara a casa dos pais para se envolver na Guerra Civil de Espanha. Pode finalmente conviver com a filha, uma bebé que nascera na clandestinidade e vivera com a jovem mãe as inúmeras fugas às perseguições da PIDE.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Teologia da revolução



Álvaro Cunhal apresentou-se durante um importante período da história da União Soviética como um modelo de dirigente comunista e atingiu um elevado nível de reconhecimento entre os seus correligionários internacionais. Beneficiou de um estatuto que durou largos anos e que lhe permitiu viver com tranquilidade em Moscovo e em França com o apoio directo do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) e circular por todos os países socialistas com considerável liberdade de movimentos. A classe dirigente reconhecia-lhe mérito político, empenho pessoal e, acima de tudo, reconhecia-lhe a necessária disciplina revolucionária. Cunhal prescindiu de uma parte da sua vida e dos afectos para se dedicar a uma causa de inspiração transcendente que exigiu submeter-se a intensos sacrifícios físicos e psicológicos. O seu percurso tornou-se numa teologia da revolução. A convicção férrea e a dinâmica emocional controlada permitiram-lhe suportar as privações com a mesma determinação com que penalizou os que abriram brechas na couraça revolucionária. Também revelou uma profunda intolerância e desprezo para com os dissidentes intelectuais e criticou duramente os que cederam às torturas físicas por comprometerem a segurança colectiva e a moral revolucionária. A disciplina e a fidelidade tornaram-se dogmas de comportamento.

Álvaro Cunhal e a filha Ana

Álvaro Cunhal e Isaura Moreira apaixonaram-se pouco tempo depois de começarem a trabalhar juntos e nesse mesmo ano tiveram uma filha. A única da vida do líder do PCP. Ana Cunhal nasceu em Dezembro de 1960 numa clínica em Lisboa, na Alameda D. Afonso Henriques, perto do antigo cinema Império. O parto foi realizado por um médico comunista que exercia a sua actividade profissional na legalidade. Aceitou o pedido de Cunhal para receber Isaura em sua casa e realizou o parto na clínica onde trabalhava. Poucos dias após o nascimento, Isaura foi para casa do médico para um breve período de recobro. É nessa altura que Cunhal vê a filha pela primeira vez. A relação entre Cunhal e Isaura terminaria cinco anos mais tarde quando viviam em Moscovo.

Álvaro Cunhal com a filha Ana


O líder comunista tentou proteger a filha da inevitável perturbação provocada pela ruptura emocional e pela consequente separação física do casal, mas a relação com Isaura Moreira evoluiu para uma amizade que se manteve até ao fim. Cunhal entregou -se à educação da filha como um “pai galinha”. Tentou estar presente quase diariamente em Moscovo na educação de Ana e, mais tarde, efectuou frequentes visitas a Bucareste para manter o contacto familiar. A antiga companheira admite que Cunhal até preferisse ter um filho homem, mas elogia sem reservas a sua dedicação à filha. “Deu -lhe sempre muita atenção”, garante Isaura Moreira. “Fazia tudo para que ela fosse feliz”.

Álvaro Cunhal pessoal e íntimo

Álvaro Cunhal envolve a jovem companheira num abraço que tem de ser ágil para prevenir um eventual golpe de sorte dos batedores. A brigada da PIDE acabou de tomar a aldeia da Achada nessa tarde do Outono de 1960. É o culminar da persistente operação marcial em curso desde Janeiro. É um momento de medo e tensão entre os três fugitivos. Os agentes da polícia política estavam a apertar o cerco ao aparelho clandestino do PCP e o líder do partido quase fora preso umas semanas antes no Penedo de Sintra. Isaura Maria Moreira está grávida daquela que será a única filha de Álvaro Cunhal. O abraço de despedida junto ao areal da praia das Maçãs irá ficar gravado na sua memória, mas naquele instante só conta com o amparo da irmã adolescente que os acompanha desde o refúgio na Achada. As duas jovens têm dificuldade em racionalizar o frenesim da fuga e o perigo da perseguição enquanto ouvem as instruções de Cunhal. Tem os cabelos estranhamente pintados de louro e uns desnecessários óculos de lentes grossas mal amparados pelo nariz aquilino para evitar ser reconhecido. A PIDE detectara-o e precipitara o assalto à pequena aldeia de Mafra naquela tarde. A operação só fracassou porque Isaura e Dorilia surpreenderam um agente mal aprumado num disfarce efeminado. O alerta bastou para Cunhal desarvorar de carro com ambas na direcção do mar.





Os batedores nunca tinham estado tão próximos da captura desde a monumental fuga colectiva de Peniche. Cunhal pede a Isaura e Dorilia para esperarem por alguém que irá resgatá-las. Entra para o carro e volta a desaparecer. As duas irmãs ficam sozinhas. A poucos quilómetros dali, os agentes da PIDE ainda revistam a casa clandestina à procura de pistas que permitam bater o rasto dos três fugitivos. Os pais da companheira de Cunhal tinham ficado para trás a queimar documentos que pudessem colocar a segurança colectiva em risco e para proteger a fuga do líder atrasando os perseguidores. Eram ambos funcionários do partido com funções na rede clandestina de pontos de apoio. A jovem Isaura tinha conhecido Cunhal poucos meses antes, durante a fuga de Peniche, precisamente devido ao envolvimento dos pais. Ajudou a família durante o período de tempo que tiveram de esconder, numa pequena vivenda nos arredores de Torres Vedras, o guarda da GNR que aceitara ser corrompido para facilitar a fuga colectiva dos dirigentes do PCP. O pai recebeu depois instruções para levantar uma casa de apoio em Sintra para acolher Cunhal.




É nessa altura que Isaura Moreira vê dirigir-se pela primeira vez na sua direcção a silhueta esguia do mítico líder do PCP. Desde a infância que Isaura ouvia os pais falarem em surdina sobre Cunhal como se fosse uma espécie de semideus. Cunhal tinha 47 anos e Isaura 20. A beleza andrógina e o heroísmo do revolucionário favoreceram o magnetismo. A adrenalina intensa da fuga de Peniche deu lugar à ansiedade persistente provocada pelo medo de serem surpreendidos e capturados pelos agentes da PIDE que vasculhavam toda a região à sua procura. Ao longo dos dias seguintes conviveram nesta tensão escondidos na discrição de uma casa clandestina de Sintra. Tiveram de se separar ao fim de pouco tempo, mas reencontraram-se de imediato em Mafra num outro ponto de apoio. Foi junto ao quintal dessa casa e já grávida de Cunhal que Isaura identificou um agente da PIDE disfarçado de mulher. No final da tarde, com o Sol a esconder -se e uma brisa desagradável a afastar as últimas pessoas da praia das Maçãs, surgiu um vulto do horizonte. Octávio Pato caminhou lentamente pelo areal até chegar junto às duas jovens irmãs, sozinhas, com frio e fome, assustadas. Levou -as de carro para Lisboa. Dorilia seguiu para junto dos pais na margem do Sul do Tejo e Isaura foi sendo transferida por várias casas até Cunhal garantir condições para a companheira poder dar à luz em segurança. Ana Cunhal nasceu clandestina no dia de Natal de 1960 numa clínica de Lisboa, perto da Alameda D. Afonso Henriques. O pai teve de se disfarçar para se deslocar a casa do médico que assistiu ao parto e pegá -la a ao colo pela primeira vez. Voltou a despedir-se para mergulhar na clandestinidade. Os encontros ao longo dos meses seguintes tiveram de ser esporádicos por motivos de segurança. A liberdade só foi possível no estrangeiro. Reencontraram-se em Moscovo e desencontram-se depois em Bucareste quando os pais se separaram. Só depois do 25 de Abril é que Álvaro Cunhal regressou à praia das Maçãs. Esperava pela filha no seu gabinete na sede do PCP na Soeiro Pereira Gomes e depois de um dia de intenso trabalho político partiam juntos para ver o pôr do Sol e caminhar pelo mesmo areal da praia das Maçãs onde se tinham separado duas décadas antes. Um reencontro interior com a memória do último adeus que Cunhal guardou só para si.


segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Álvaro Cunhal no poder

Após o 25 de Abril, Álvaro Cunhal defendeu a imediata constituição de um Governo Provisório com a representação de todas as forças e sectores políticos democráticos e liberais e reafirmou a disponibilidade do PCP para o integrar. O que aconteceu com a sua posse como ministro sem pasta do I Governo Provisório. A ascensão dos comunistas ao poder num país da Europa Ocidental provocou alguma apreensão nos Estados Unidos e nas democracias europeias. O Rumo à Vitória passava à fase da plena execução. O discurso no aeroporto de Lisboa já tinha clarificado a táctica do PCP para o curto prazo e assumido o Movimento das Forças Armadas como parceiro operacional para as etapas seguintes. “A aliança do povo e dos militares é, na situação específica hoje existente, uma condição essencial para o progresso da democracia da sociedade portuguesa. Pela nossa parte, tudo faremos para que se torne irreversível essa aliança, soldada desde o 25 de Abril até hoje”.


Álvaro Cunhal na tropa


Álvaro Cunhal foi convocado para cumprir o serviço militar em Lisboa, mas não compareceu na incorporação prevista para Agosto de 1937. Tinha sido preso nesse ano após o regresso de Espanha e só voltou à liberdade em Julho do ano seguinte. Apresentou-se para cumprir o serviço militar somente em Novembro de 1939. Quando se apresenta no Exército, Cunhal é um jovem revolucionário que regressa de uma guerra ideológica perdida para as forças adversárias que começam a dominar a Europa. Tem diante de si a perspectiva de cumprir o serviço militar nas fileiras da ditadura depois das experiências galvanizantes que viveu na União Soviética e Espanha. Enfrenta agora também uma penosa acusação de deserção pelo tempo que demorou a apresentar -se no quartel. “Era falso. Porque quando fui convocado para a integração me encontrava preso e, portanto, não era desertor”. Durante a incorporação no quartel de Santo Estêvão, Penamacor, teve de executar as tarefas atribuídas aos soldados rasos, apesar de ser estudante universitário, isto é, de ter direito a frequentar a escola de oficiais milicianos. “O facto de estar com os meus companheiros a limpar a erva no quartel não me deslustrava, nem era uma coisa que eu considerasse que não devesse fazer”. Aproveitou a ocasião para ridicularizar alguns incidentes a que assistiu e que mais tarde contou Yulia Petrova . Num desses episódios, os soldados que acompanharam uma cerimónia fúnebre realizada no cemitério público, entre os quais Cunhal, foram proibidos de utilizar munições verdadeiras por razões de segurança. “Ainda puseram a hipótese de usar balas de pau, mas acharam que mesmo assim isso poderia ser perigoso”. A solução foi fazer umas “buchas bem fortes de algodão” que, quando disparadas após o barulhento puxar das culatras, se limitaram a fazer um pequeno “barulhinho: pshh pshh!”.

Álvaro Cunhal, o pai

Ana Cunhal fotografada pelo pai num Inverno em Moscovo


O cimo da colina dos Montes Pardal, entre o início da avenida que liga a universidade e a igreja da Trindade, proporciona uma vista privilegiada sobre Moscovo. É um local muito usado pelos moscovitas para fazerem saltos de esqui. Actualmente, existem duas pistas em funcionamento, tendo a mais longa características olímpicas. “O Álvaro gostava de levar a filha àquele sítio para verem os saltos”, recorda Isaura Moreira. “Era uma zona muito procurada pelas pessoas para se divertirem na neve”. Ana Cunhal teve problemas de saúde nesta período da sua infância em Moscovo. Cunhal e Isaura tinham dificuldades para a alimentar e chegaram a ver-se forçados a interná-la num hospital de Moscovo. O pai insistia para que comesse e tentava distraí-la com pequenas brincadeiras e jogos. “A nossa filha alimentava -se muito mal e ele fazia desenhos para a distrair e aproveitava para lhe colocar a comida na boca”, recorda Isaura. Ana chega a passar alguns dias recusando as duas principais refeições. O pai tentava tudo para a convencer a alimentar -se. "Era muito paciente e dedicado”. Nesta primeira fase do exílio com o seu núcleo familiar, Cunhal deixa de ser apenas o líder de um partido revolucionário e clandestino para se assumir como pai e companheiro É a primeira vez que tal sucede na sua vida de revolucionário. Ajudava a limpar as fraldas de pano e cozinhava com alguma frequência. “Fazia lindamente mioleira com ovos mexidos e convidava-me para ir lá a casa almoçar com eles”, refere Margarida Tengarrinha. “O Álvaro trabalhava muito e ajudava nas tarefas de casa para se libertar dessa intensa actividade intelectual”, conclui Isaura Moreira.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Encontros secretos

Santiago Carrillo fotografado na sua casa em Madrid



Santiago Carrillo e Álvaro Cunhal encontraram-se secretamente numa casa clandestina na serra de Sintra após a Segunda Guerra Mundial. “Cunhal era um homem impressionantemente magro. Vivia com imensas dificuldades e todos os camaradas comunistas portugueses tinham poucos recursos financeiros”, recorda o antigo líder dos comunistas espanhóis.. Os dois homens desfiam relatos das suas experiências pessoais e colectivas ao longo da madrugada. Fumam muito, conversam longamente, ceiam. Discutem os sucessos e os insucessos dos comunistas portugueses e espanhóis, falam da União Soviética e trocam promessas de solidariedade no combate aos ditadores ibéricos.


A conversa que corta o silêncio de Sintra em palavras quase sussurradas é entabulada cada vez com mais cigarros. Cunhal e Carrillo fumam bastante e o momento de descompressão e de segurança conforta-os. A serra parece estar adormecida, mas o cenário muda num instante. Por volta das quatro da madrugada, alguém bate à porta da casa clandestina e Cunhal julga tratar -se de um ataque da PIDE. “A polícia!”. Levanta-se e corre de imediato para uma janela, que começa a abrir no intuito de saltar e fugir para a escuridão da serra. “Ele abriu a janela disposto a saltar lá para fora!”, conta Carrillo. O comunista espanhol também salta da cadeira com Ramón Ormazábal, mas são menos lestos. Temem seriamente que a aventura portuguesa esteja prestes a terminar em catástrofe e antecipam mentalmente os fuzilamentos franquistas. Falso alarme. Trata -se somente de um funcionário do PCP que apareceu para chamar Cunhal e levá -lo para um encontro urgente. Cunhal desiste de saltar da janela e regressa para a sala. "Foi um bom susto", reconhece Carrillo.


As paixões de Álvaro Cunhal

O Álvaro era um homem que despertava paixões. Era muito bonito”, recorda Sofia Ferreira, que partilhou na sua juventude a casa clandestina de Álvaro Cunhal no Luso.




O Álvaro foi um homem como outro qualquer na sua vida sexual. Apesar de querer passar pelo homem que não se interessava por essas coisas e que não prevaricava, prevaricou. Prevaricou como as outras pessoas, homens e mulheres, prevaricam”, acrescenta Cândida Ventura, amiga de Álvaro Cunhal desde os tempos universitários.

Ana Cunhal em Moscovo com o pai



Ana Cunhal com o pai na cerimónia de inauguração dos Jogos Olímpicos de Moscovo, em 1980. O estádio (2009) onde esteve Álvaro Cunhal e as principais figuras do movimento comunista internacional.