quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Álvaro Cunhal pessoal e íntimo

Álvaro Cunhal envolve a jovem companheira num abraço que tem de ser ágil para prevenir um eventual golpe de sorte dos batedores. A brigada da PIDE acabou de tomar a aldeia da Achada nessa tarde do Outono de 1960. É o culminar da persistente operação marcial em curso desde Janeiro. É um momento de medo e tensão entre os três fugitivos. Os agentes da polícia política estavam a apertar o cerco ao aparelho clandestino do PCP e o líder do partido quase fora preso umas semanas antes no Penedo de Sintra. Isaura Maria Moreira está grávida daquela que será a única filha de Álvaro Cunhal. O abraço de despedida junto ao areal da praia das Maçãs irá ficar gravado na sua memória, mas naquele instante só conta com o amparo da irmã adolescente que os acompanha desde o refúgio na Achada. As duas jovens têm dificuldade em racionalizar o frenesim da fuga e o perigo da perseguição enquanto ouvem as instruções de Cunhal. Tem os cabelos estranhamente pintados de louro e uns desnecessários óculos de lentes grossas mal amparados pelo nariz aquilino para evitar ser reconhecido. A PIDE detectara-o e precipitara o assalto à pequena aldeia de Mafra naquela tarde. A operação só fracassou porque Isaura e Dorilia surpreenderam um agente mal aprumado num disfarce efeminado. O alerta bastou para Cunhal desarvorar de carro com ambas na direcção do mar.





Os batedores nunca tinham estado tão próximos da captura desde a monumental fuga colectiva de Peniche. Cunhal pede a Isaura e Dorilia para esperarem por alguém que irá resgatá-las. Entra para o carro e volta a desaparecer. As duas irmãs ficam sozinhas. A poucos quilómetros dali, os agentes da PIDE ainda revistam a casa clandestina à procura de pistas que permitam bater o rasto dos três fugitivos. Os pais da companheira de Cunhal tinham ficado para trás a queimar documentos que pudessem colocar a segurança colectiva em risco e para proteger a fuga do líder atrasando os perseguidores. Eram ambos funcionários do partido com funções na rede clandestina de pontos de apoio. A jovem Isaura tinha conhecido Cunhal poucos meses antes, durante a fuga de Peniche, precisamente devido ao envolvimento dos pais. Ajudou a família durante o período de tempo que tiveram de esconder, numa pequena vivenda nos arredores de Torres Vedras, o guarda da GNR que aceitara ser corrompido para facilitar a fuga colectiva dos dirigentes do PCP. O pai recebeu depois instruções para levantar uma casa de apoio em Sintra para acolher Cunhal.




É nessa altura que Isaura Moreira vê dirigir-se pela primeira vez na sua direcção a silhueta esguia do mítico líder do PCP. Desde a infância que Isaura ouvia os pais falarem em surdina sobre Cunhal como se fosse uma espécie de semideus. Cunhal tinha 47 anos e Isaura 20. A beleza andrógina e o heroísmo do revolucionário favoreceram o magnetismo. A adrenalina intensa da fuga de Peniche deu lugar à ansiedade persistente provocada pelo medo de serem surpreendidos e capturados pelos agentes da PIDE que vasculhavam toda a região à sua procura. Ao longo dos dias seguintes conviveram nesta tensão escondidos na discrição de uma casa clandestina de Sintra. Tiveram de se separar ao fim de pouco tempo, mas reencontraram-se de imediato em Mafra num outro ponto de apoio. Foi junto ao quintal dessa casa e já grávida de Cunhal que Isaura identificou um agente da PIDE disfarçado de mulher. No final da tarde, com o Sol a esconder -se e uma brisa desagradável a afastar as últimas pessoas da praia das Maçãs, surgiu um vulto do horizonte. Octávio Pato caminhou lentamente pelo areal até chegar junto às duas jovens irmãs, sozinhas, com frio e fome, assustadas. Levou -as de carro para Lisboa. Dorilia seguiu para junto dos pais na margem do Sul do Tejo e Isaura foi sendo transferida por várias casas até Cunhal garantir condições para a companheira poder dar à luz em segurança. Ana Cunhal nasceu clandestina no dia de Natal de 1960 numa clínica de Lisboa, perto da Alameda D. Afonso Henriques. O pai teve de se disfarçar para se deslocar a casa do médico que assistiu ao parto e pegá -la a ao colo pela primeira vez. Voltou a despedir-se para mergulhar na clandestinidade. Os encontros ao longo dos meses seguintes tiveram de ser esporádicos por motivos de segurança. A liberdade só foi possível no estrangeiro. Reencontraram-se em Moscovo e desencontram-se depois em Bucareste quando os pais se separaram. Só depois do 25 de Abril é que Álvaro Cunhal regressou à praia das Maçãs. Esperava pela filha no seu gabinete na sede do PCP na Soeiro Pereira Gomes e depois de um dia de intenso trabalho político partiam juntos para ver o pôr do Sol e caminhar pelo mesmo areal da praia das Maçãs onde se tinham separado duas décadas antes. Um reencontro interior com a memória do último adeus que Cunhal guardou só para si.


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